O sistema financeiro português está novamente em momento de transição. Depois de quase oito anos sob o mesmo enquadramento legal, o Banco de Portugal prepara a revisão do regime jurídico dos intermediários de crédito, numa iniciativa que pretende reforçar a transparência, a comparabilidade das propostas e a proteção dos consumidores. À primeira vista, parece uma revisão técnica, mas a realidade é mais profunda. O que está em causa é a consolidação de um setor que cresceu de forma expressiva, conquistou relevância no mercado e agora precisa de provar que pode sustentar esse crescimento com rigor, ética e confiança.
Desde 2018, o Decreto-Lei n.º 81-C/2017 define os requisitos de acesso e de exercício da atividade de intermediação de crédito. O diploma surgiu como transposição da Diretiva Europeia 2014/17/UE, que regulou os contratos de crédito aos consumidores para imóveis de habitação. A sua implementação em Portugal criou um quadro exigente, com regras sobre autorização, registo, deveres de conduta, formação, supervisão e sanções. No entanto, à medida que o setor evoluiu, começaram a surgir novas realidades que o legislador original não previu. A digitalização, as plataformas tecnológicas, a diversificação dos modelos de negócio e a pressão comercial na geração de crédito tornaram evidente que a lei precisa de atualização.
O Banco de Portugal, enquanto autoridade de supervisão, identificou lacunas relevantes na aplicação prática do regime. Em especial, a distância entre o que é declarado e o que efetivamente acontece na relação entre intermediários, bancos e consumidores. Há situações em que o intermediário afirma representar diversas instituições, mas na prática trabalha apenas com uma ou duas. Em outros casos, a remuneração recebida depende de fatores que podem influenciar a imparcialidade da recomendação feita ao cliente. Estes aspetos não são apenas detalhes administrativos; comprometem a perceção de independência e minam a confiança do público no processo de intermediação.
O regulador entende que chegou o momento de alinhar a prática com os princípios que estiveram na origem do regime de 2017. Essa revisão não tem natureza punitiva, mas corretiva. Pretende ajustar o sistema à realidade do mercado, fortalecer a lealdade ao consumidor e criar condições para que a intermediação continue a desempenhar um papel relevante e credível na concessão de crédito em Portugal.
A intermediação de crédito em Portugal cresceu em dimensão e importância. Entre 2018 e 2020, o Banco de Portugal registou mais de cinco mil intermediários autorizados, número que continuou a aumentar nos anos seguintes. Esta expansão ocorreu num cenário económico desafiante, marcado por taxas de juro variáveis, pela volatilidade do mercado habitacional e por transformações digitais que alteraram completamente o modo como os consumidores procuram, comparam e contratam crédito.
O intermediário de crédito passou a ser, para muitos portugueses, o primeiro ponto de contacto no processo de obtenção de financiamento. A relação de confiança estabelecida com o cliente conferiu-lhe poder de influência significativo, mas também responsabilidade acrescida. A lei de 2017 criou uma base sólida, contudo deixou margem para práticas heterogéneas e para zonas cinzentas que o mercado explorou de forma desigual.
O Banco de Portugal tem vindo a alertar para o facto de existir ainda um desequilíbrio entre a promessa de independência e a efetiva autonomia dos intermediários. Em certos casos, a dependência económica face a um número limitado de bancos ou o modelo de remuneração adotado criam incentivos que podem não estar alinhados com o interesse do consumidor. É este desequilíbrio que a revisão pretende corrigir, aproximando a atividade de um padrão mais transparente, comparável e verificável.
Embora a proposta final ainda não tenha sido publicada, as declarações do Banco de Portugal e as notícias recentes permitem antecipar os eixos centrais da revisão. São quatro as dimensões estruturantes que se destacam: a pluralidade de propostas, a transparência na remuneração, o reforço dos deveres de informação e a simplificação administrativa com adaptação digital.
Pluralidade de propostas
Uma das medidas mais debatidas é a obrigatoriedade de o intermediário apresentar ao cliente várias propostas de crédito. O objetivo é assegurar que o consumidor tem acesso a opções genuinamente comparáveis e não apenas a simulações de um único banco. A exigência de pluralidade pretende garantir que a intermediação acrescenta valor real ao processo, atuando como mediador imparcial e não como canal exclusivo de uma instituição. Essa regra coloca o cliente no centro da decisão e obriga o intermediário a desenvolver um portefólio de relações bancárias mais amplo e efetivo.
Transparência na remuneração
Outro eixo de mudança incide sobre a forma como os intermediários são remunerados e sobre a obrigação de divulgar essas condições ao consumidor. O regulador defende que a remuneração deve ser comunicada de forma clara, permitindo que o cliente compreenda se há fatores económicos que possam influenciar a recomendação apresentada. Além disso, pretende-se eliminar esquemas de remuneração que dependam de variáveis como taxa de juro ou prazo do contrato, que podem criar conflitos de interesse. A transparência é vista como ferramenta de alinhamento entre o interesse do intermediário e o do consumidor.
Reforço dos deveres de informação e de conduta
A revisão deverá reforçar o conjunto de deveres já existentes, exigindo que a informação fornecida seja não apenas completa e verdadeira, mas também comparável e verificável. O intermediário terá de explicar de forma documentada quais os critérios usados na seleção das propostas e quais as instituições envolvidas. O objetivo é garantir que o consumidor possa compreender e auditar as razões que levaram à recomendação feita. Esta dimensão inclui também o reforço da supervisão e do reporte, com novos requisitos de comunicação ao Banco de Portugal.
Simplificação e adaptação digital
A revisão pretende igualmente simplificar os processos de registo, reporte e comunicação, aproveitando o potencial das plataformas digitais. A intermediação online, os modelos híbridos e as soluções de automatização ganharam protagonismo nos últimos anos, e o regime jurídico precisa de os acolher sem comprometer os princípios de transparência e proteção do consumidor. A digitalização pode tornar os procedimentos mais rápidos e acessíveis, desde que acompanhada de mecanismos eficazes de supervisão e segurança de dados.
A revisão do regime jurídico trará impactos significativos para todas as partes envolvidas. Para os consumidores, para os intermediários e para as instituições mutuantes, as alterações representam uma redefinição de papéis e responsabilidades.
Para os consumidores
Os clientes deverão beneficiar de um processo mais claro, mais competitivo e com menos assimetrias de informação. Ao receber várias propostas de diferentes bancos, poderão comparar condições e escolher de forma mais informada. Saberão quanto o intermediário recebe e em que condições, o que reforça a confiança no processo. Com maior supervisão, aumentará também a segurança de que as regras são cumpridas e que eventuais abusos são sancionados. No conjunto, o mercado tornar-se-á mais transparente e o consumidor mais protegido.
Para os intermediários de crédito
Os profissionais e empresas que exercem esta atividade terão de se adaptar a um ambiente mais exigente. A diversidade de propostas obrigará a ampliar relações institucionais, a rever modelos de negócio e a criar processos internos de verificação e registo. A transparência na remuneração implicará maior cuidado contratual e contabilidade clara. O reforço do reporte e da conduta exigirá sistemas internos mais robustos e pessoal qualificado. Mas essa exigência também pode ser encarada como oportunidade. Os intermediários que adotarem desde já práticas de transparência e pluralidade poderão destacar-se naturalmente pela credibilidade e pela confiança que inspiram aos consumidores.
Para as instituições mutuantes
Os bancos e sociedades financeiras, que dependem em larga medida dos intermediários para a geração de crédito, verão igualmente ajustada a sua relação com estes parceiros. A obrigatoriedade de pluralidade de propostas e a transparência remuneratória obrigam as instituições a repensar os contratos de vinculação e a natureza dos incentivos que oferecem. Os bancos mais preparados para atuar de forma aberta e competitiva terão vantagem num mercado onde o consumidor compara de forma efetiva as alternativas. Além disso, as instituições terão de reforçar os seus sistemas de integração digital com intermediários, garantindo rapidez na emissão de propostas e consistência na comunicação.
Num plano mais alargado, a revisão poderá desencadear uma transformação estrutural no ecossistema do crédito em Portugal. A obrigatoriedade de comparabilidade e a transparência da remuneração criam condições para uma concorrência mais equilibrada entre bancos, promovendo uma descida gradual dos custos de financiamento e uma melhoria da qualidade da informação disponível.
A tecnologia desempenhará um papel decisivo neste processo. As plataformas digitais permitem automatizar a recolha e comparação de propostas, simplificar a interação com múltiplas instituições e registar digitalmente as decisões tomadas. A integração de ferramentas de verificação documental, assinatura eletrónica qualificada e avaliação de solvabilidade pode reduzir tempos de resposta e custos operacionais, mantendo os padrões de segurança exigidos.
O desafio consiste em equilibrar a eficiência digital com a responsabilidade regulatória. A digitalização não pode ser entendida como dispensa de supervisão, mas como meio de a tornar mais eficaz. A combinação entre automação, dados fiáveis e auditoria em tempo real pode criar um ambiente de intermediação mais seguro e mais previsível, tanto para consumidores como para supervisores.
A revisão do regime jurídico não deve ser vista como ameaça ao setor, mas como um processo natural de consolidação. O crescimento rápido dos últimos anos trouxe diversidade, mas também dispersão. Agora, a necessidade é de uniformizar padrões, reduzir opacidades e reforçar a confiança.
A credibilidade da intermediação de crédito depende da perceção de imparcialidade e da consistência com que essa imparcialidade é demonstrada. A nova legislação permitirá separar práticas transparentes das práticas pouco claras e dará instrumentos ao regulador para agir quando a confiança pública é posta em causa.
Para as empresas e profissionais que pretendem operar de forma sustentável, este é o momento de investir em formação, em compliance e em tecnologia. A adoção antecipada de mecanismos de transparência, registo digital e pluralidade de propostas será uma vantagem quando a revisão entrar em vigor.
O CrediDesk acompanha com atenção a evolução deste processo e reconhece que a revisão do regime jurídico dos intermediários de crédito representa um marco relevante para o setor. Acredita que a transparência, a comparabilidade e a ética profissional são pilares essenciais para o fortalecimento da intermediação e para o equilíbrio entre instituições e consumidores.
Com essa visão, o CrediDesk procura desenvolver ferramentas e soluções que facilitem a adaptação dos profissionais às novas exigências, promovendo eficiência, segurança e clareza na gestão de processos. Mais do que antecipar alterações legais, trata-se de contribuir para um ecossistema de crédito mais estável, mais previsível e mais justo.
O mercado de crédito português tem hoje condições para evoluir de forma equilibrada. A revisão do regime jurídico surge no momento certo para consolidar o progresso alcançado, corrigir desequilíbrios e criar um novo patamar de confiança. O futuro da intermediação dependerá menos da quantidade de operações e mais da qualidade da relação entre intermediário, banco e cliente.
Em resumo, a revisão do regime jurídico dos intermediários de crédito é, em última análise, um teste à maturidade de todo o sistema. Representa o reconhecimento de que o setor alcançou um peso suficiente para merecer atualização legislativa e uma oportunidade para reforçar a transparência e a credibilidade.
Os próximos meses serão decisivos. O Banco de Portugal deverá apresentar a proposta final ao Governo ainda este ano, e a expectativa é de que as novas regras entrem em vigor no decorrer de 2026. Até lá, todos os intervenientes têm a possibilidade de se preparar, de ajustar práticas e de mostrar que o setor da intermediação pode continuar a crescer, agora com base em padrões mais exigentes de ética, rigor e clareza.
A evolução do regime jurídico não é apenas uma reforma técnica, é um passo necessário para consolidar um mercado de crédito onde a confiança, a responsabilidade e a transparência não sejam apenas objetivos regulatórios, mas realidades quotidianas.